Ser leal aos antepassados e carregar as suas feridas
Filho de peixe sabe nadar
Como começam as alianças familiares?
Nasce um bebé, e quase imediatamente começam as comparações: “Tem a testa da mãe”, “Tem os olhos são do pai” e por aí fora. É como se a pertença à família fosse reforçada pelos laços de semelhança visíveis. Por isso, muitas vezes forçam-se outras parecenças “é tal e qual o avô…”. Esta pode ser uma tentativa de se ultrapassar a perplexidade de se estar perante alguém único, que não precisa de parecenças, quer físicas quer psicológicas geradas por crenças “as pessoas desta família são corajosas”, ou verdades como “para ser feliz negue sempre os sentimentos desagradáveis – medo, solidão, tristeza entre outros – e coloque a cabeça a funcionar”.
As lealdades familiares libertam ou aprisionam?
As lições aprendidas pelos nossos antepassados sobre sobrevivência, segurança e crenças, são transmitidas pela palavra ou por gestos, de forma consciente ou inconsciente, através das gerações. Estes legados podem criar uma maior ligação entre os membros, aumentar a resiliência e adaptação, mas também podem manter segredos que, ao serem expostos, poderiam ameaçar a identidade familiar. Temas relacionados com a sexualidade, doença mental, alcoolismo, droga ou outros abusos de substâncias, encorajam a vergonha e o secretismo “na nossa família não temos, nem falamos de comportamentos vergonhosos”.
É na família que, inicialmente, se moldam os princípios de convivência em sociedade, se adquire uma ética de conduta, e, nalguns casos, profissões “o negócio da família é a restauração, e todos devem fazer parte”. Muitos aspetos são conscientes e por conformismo ou receio de se ir contra as vontades familiares, vai-se para profissões escolhidas ou bem vistas no seio familiar, mesmo que não seja essa a vocação ou o desejo próprio. Esta é uma lealdade que pode ser seguida para se conseguir as boas graças, ou apenas para garantir uma ligação que, de outro modo, não se teria.
Outro tipo de lealdade é a que se carrega inconscientemente e, ao invés de facilitar a realização do potencial, cria amarras e serve para justificar a existência de medos ou formas de sentir. Na verdade, faziam sentido na geração ou gerações anteriores, fruto do contexto social, político ou cultural, mas não na atual.
Algumas destas lealdades surgem quando as pessoas se dão conta de que a tristeza, ansiedade, ideias suicidas ou outros estados emocionais são de alguma forma vivências dos antepassados, associadas a determinados contextos, mais do que da própria pessoa. E deixar de estar triste ou ansioso é como se a pessoa estivesse de alguma forma a atraiçoar, ou a ser desleal para com um ou mais elementos da família. A existência de temas tabus e segredos podem levar a que uma pessoa se considere “defeituosa”, pois julga que é a primeira na família que tem problemas com o álcool, comida ou drogas.
É possível herdar vivências emocionais?
Da família herdam-se formas de pensar, fazer e atitudes. Por vezes a afinidade entre duas ou mais pessoas manifesta-se e é reforçada por gestos, expressões ou palavras comuns. É normal associar a transmissão de características físicas entre gerações como um fenómeno da genética, mas tudo o que diz respeito à atividade emocional, às experiências afetivas ou traumáticas, pertenceriam apenas a quem as vive.
Um estudo desenvolvido por Dora L. Costa e colaboradores em 2018, identificou uma maior probabilidade de os filhos, nascidos depois de os pais terem sido prisioneiros de guerra, terem uma longevidade menor comparativamente àqueles que não descendiam.
A investigação em pessoas e animais começa a encontrar através da epigenética, um mecanismo pelo qual as experiências de uma vida podem ser transmitidas às gerações seguintes. Trata-se de pequenas alterações químicas que fazem com que a informação genética seja expressa ou inibida. Estas mudanças permitem que exista uma adaptação às condições do meio, sem que exista uma mudança permanente do código genético.
Um estudo de 2016 desenvolvido por Rachel Yehuda detetou alterações epigenéticas num gene envolvido na gestão do stress. Esta investigadora foi uma das primeiras a demonstrar, num estudo de pequena dimensão, como os descendentes das vítimas do holocausto tinham sintomas físicos e emocionais relacionados com traumas que nunca viveram e revelavam alterações epigenéticas. De acordo com aquela investigadora as alterações epigenéticas têm como função ampliar as formas de adaptação a situações de agressão extremas – acidentes, fome, guerra, catástrofes, abuso – que ameaçam a sobrevivência e provocam reações psicológicas intensas.
Estas alterações eram transmitidas de pais para filhos, mas não às filhas. São os filhos que têm uma maior probabilidade de viver as consequências, experimentadas pelos pais, da exposição a situações que colocam em risco a sobrevivência.
Estas feridas podem ser criadas por contágio através das emoções – “na minha família são todos muito ansiosos” – e da absorção de formas de lidar com o mundo que, quando não são seguidas, ameaçam a expulsão do seio familiar, “quando um acontecimento não corre conforme o planeado, a culpa é sempre nossa”. Neste caso o que unia esta família seria o sentimento de culpa que existia sempre que alguma coisa não se passasse conforme o planeado.
Como sobreviver e tirar partido destas “heranças” familiares?
O herdar reações e formas de lidar com determinados traumas pode contribuir para uma maior capacidade de sobrevivência e adaptação “afinal é mais seguro ter ao seu lado alguém que conheça a adversidade do que a alguém que nunca teve que lutar por nada?”.
Os estudos referidos sugerem a transmissão de experiências emocionais através da epigenética. Mas, ao contrário do determinismo genético, estas heranças emocionais, à luz dos conhecimentos da neurobiologia, neurociência e psicologia, podem ser transformadas, no âmbito da psicoterapia, para que não deixe aos seus filhos estas “bagagens psicológicas”, possibilitando assim que estes tenham as suas próprias experiências e concretizem os seus próprios sonhos.